Homero conserva na história do Ocidente um estatuto ímpar: estão-lhe atribuídas as primeiras composições poéticas do riquíssimo manancial da Literatura Grega. Desde o início matéria de eleição dos poetas e filósofos mais antigos, dentro das fronteiras estreitas da Hélade, e entusiasticamente acolhidos por um público cada vez mais vasto, nos círculos amplos de influência da cultura grega, Homero, o “Poeta” por antonomásia, e a sua obra, verdadeiro guia espiritual da Antiguidade, acabaram por se tornar os mais nucleares dos pilares da unidade helénica e de toda a cultura ocidental.
Ainda que historicamente documentado- por volta do final do séc. VIII ou inícios do séc. VII a.C.— época em que a poesia épica de composição oral alcançava o seu mais elevado ponto de desenvolvimento, e a sociedade grega, liderada pela classe aristocrática, vivia um período de franco renascimento económico e cultural - o aparecimento isolado dos Poemas Homéricos configura um enigma sem precedentes. Representando um extraordinário começo sem precedentes, os primeiros documentos escritos da Literatura europeia permitem reconstituir a imagem diáfana de um longo percurso precedente de tradição oral. Sendo, pois, o primeiro produto da literariedade, eles condensam ainda o resultado do seu próprio passado pré-literário.
O surpreendente reconhecimento de que os Poemas Homéricos, o mais antigo marco da literariedade ocidental, têm natureza oral, foi proposto pelos Prolegomena ad Homerum de Wolf, no final do séc. XVIII, e cientificamente fundamentado, desde a primeira metade do século XX, sobretudo pelas investigações sistemáticas de Milman Parry e dos seus sucessores. Toda a investigação filológica tem sublinhado desde então nos Poemas as marcas estruturais de uma poesia composta e transmitida oralmente, e, por isso, enquadrada numa categoria peculiar da literariedade. Mais do que pretender emoldurar a criação homérica numa fase em que a escrita estaria, ou não, comprovada como evidência histórica, as propostas da investigação dos dois últimos séculos centram-se nos reflexos iniludíveis de uma peculiar técnica de composição — pela qual, recorrendo a um conjunto de fórmulas fixas repetidas, criadas colectivamente, mantidas através de complexos mecanismos de memorização (sem a ajuda da escrita, ao menos na fase inicial da concepção), e transmitidas tradicionalmente, de geração em geração, se cria uma obra fluida, que ultrapassa o poder de inventiva e de criação de um poeta como os que conhecemos, e se desvia incontestavelmente, como objecto de fruição estética, de todas as restantes criações poéticas que nos foram legadas por séculos de cultura literária escrita.
Tomando por ponto de partida a discussão científica e crítica dos postulados da Teoria da Composição Oral, este livro propõe-se fazer um estudo exaustivo das fórmulas épicas nome-epíteto (ou título epitético absoluto) associadas à representação poética dos doze deuses maiores nos Poemas Homéricos; depois de analisar a etimologia dos nomes e dos epítetos dos doze deuses, debruça-se sobre a adequação métrica das fórmulas à estrutura versificatória do hexâmetro, e procura simultaneamente comprovar a sua regular pertinência semântica no contexto narrativo. Por comodidade metodológica, organizam-se ainda na segunda parte os Anexos resultantes da análise (contextualização semântica das ocorrências dos epítetos, e adequação métrica ao espaço versificatório do hexâmetro), que poderão ser observados como meros elementos de consulta.